Investigações significativas têm sido levadas a cabo na área dos produtos medicinais à base de canabinoides, que incluem evidências provenientes de medicamentos à base de canabinoides e de canábis para fins medicinais. Saiba mais sobre os dados que sustentam os variados benefícios medicinais da canábis.
Em Portugal, a prescrição de medicamentos, preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais apenas é admitida nos casos em que se determine que os tratamentos convencionais com medicamentos autorizados não estão a produzir os efeitos esperados ou provocam efeitos adversos relevantes. O médico tem de concluir que não existe outra terapia ou que as terapêuticas existentes não são aplicáveis à condição médica particular ou, ainda, que existe uma possibilidade razoável de a canábis para fins medicinais ter um efeito positivo no processo patológico ou em sintomas graves. As indicações aprovadas pelo Infarmed incluem: espasticidade associada a esclerose múltipla ou lesões da espinal-medula; náuseas ou vómitos (resultantes de quimioterapia, radioterapia e uma combinação de terapia para o VIH e medicação para a hepatite C); estimulação do apetite nos cuidados paliativos de doentes sujeitos a tratamentos oncológicos ou com SIDA; dor crónica (associada a doenças oncológicas ou ao sistema nervoso, como por exemplo na dor neuropática causada por lesão de um nervo, dor do membro fantasma, nevralgia do trigémeo ou após herpes-zóster); síndrome de Gilles de la Tourette; epilepsia e tratamento de transtornos convulsivos graves na infância, como as síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut, e; glaucoma resistente à terapia. 1
Para mais informações sobre cada uma das indicações e a canábis para fins medicinais, continue a ler os temas desta secção no website WE CARE.
Sim. Na base de dados ClinicalTrials.gov, aparecem cerca de 700 ensaios clínicos através da pesquisa por “canábis”, “canabinoide”, “canabidiol” ou “THC” como uma das possíveis intervenções utilizadas no ensaio, incluindo mais de 170 ensaios clínicos que estavam ativos (a recrutar e a não recrutar) desde 1 de setembro de 2021. 2 Esta pesquisa eliminou os ensaios clínicos que estavam a ser realizados com o objetivo de avaliar parâmetros como a intoxicação, dependência, consumo abusivo ou transtorno relacionado com o consumo de produtos medicinais à base de canabinoides. A maioria destes ensaios clínicos é patrocinada por organizações ou instituições académicas, embora as empresas também patrocinem alguns ensaios clínicos. Os ensaios ativos abarcam uma vasta gama de indicações, incluindo perturbações psicóticas, muitas formas de dor, ansiedade, esquizofrenia, VIH/SIDA e depressão, assim como uma série de ensaios clínicos que avaliam o potencial de criação de dependência e os efeitos secundários da canábis para fins medicinais.
O sistema endocanabinoide (ECS) é uma via endógena ubíqua de controlo da dor.3 Para saber mais sobre o sistema endocanabinoide, consulte a secção O QUÊ: SOBRE A CANÁBIS PARA FINS MEDICINAIS deste website. O ECS manifesta-se em todas as vias nocicetivas (dor), incluindo a via periférica, espinal e supra-espinal. Os recetores CB1 e CB2 têm implicações diretas nos processos da dor em todas as diferentes estruturas neurológicas nocicetivas: periféricas, espinais e supra-espinais. O agonismo do recetor CB suprime perifericamente os mecanismos relacionados com hiperalgesia e alodinia, ao passo que a nível espinal modula os mecanismos relacionados com a sensibilização central. Os canabinoides também são ativos nas áreas cerebrais relacionadas com a dor, como a substância cinzenta periaqueductal, o núcleo ventroposterolateral e o tálamo. No entanto, é importante referir que os efeitos dos recetores não-CB1 e não-CB2 dos canabinoides são também relevantes nos processos relacionados com a dor, incluindo a ação dos canabinoides nos TRPV1 e nos mediadores pró-inflamatórios, como os TNFα.4
Ao modular o sistema ECS através de canabinoides exógenos, é possível regular o input nocicetivo em vários locais, o que resulta em analgesia. A eficácia antinocicetiva do THC e do CBD foi demonstrada inequivocamente em vários modelos distintos de dor inflamatória e neuropática. Avance para a secção seguinte para ficar a saber quais as guidelines que sustentam a utilização de canábis para fins medicinais para o tratamento da dor.
Ensaios clínicos com preparações de canábis para fins medicinais com dronabinol, flor seca ou medicamentos à base da planta da canábis, como nabiximols, comprovaram a eficácia dos canabinoides no tratamento da dor crónica de várias etiologias, sobretudo nos casos em que os tratamentos convencionais falharam. 5
Em todo o mundo, várias sociedades e entidades científicas ligadas à área da dor estabeleceram recomendações para a utilização de produtos medicinais à base de canabinoides para a gestão da dor. Seguem-se dois exemplos.
Em 2018, a Federação Europeia da Dor (EFIC) publicou um documento com a sua posição relativamente à utilização de medicamentos à base da planta da canábis como terapêuticas de terceira linha para a dor crónica neuropática. Para todas as outras condições de dor crónica (dor oncológica, dor não-neuropática não oncológica), a utilização de medicamentos à base da planta da canábis deve ser considerada num ensaio terapêutico individual. 6
Em 2020, a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED) publicou um documento com a sua posição relativamente à utilização de medicamentos à base da planta da canábis. Este position paper está em consonância com as guidelines mais relevantes já publicadas na Europa. 7
A espasticidade muscular ocorre em até 80% dos doentes com esclerose múltipla. A espasticidade é causada por citocinas, prostaglandinas e espécies reativas de oxigénio que alteram as vias neuronais e dão origem a variações na função do circuito motor e no tónus muscular. Existe uma grande quantidade de dados comprovativos de que o sistema endocanabinoide (ECS) está envolvido na regulação do tónus muscular e que a ativação do ECS com canabinoides exógenos pode reduzir a espasticidade. Este efeito é mediado pelo recetor CB1, levando à ativação de um canal K+, à hiperpolarização da membrana neuronal e, em última instância, à diminuição da hiperexcitabilidade dos neurónios.8
Foram estudados diferentes produtos à base da planta da canábis para fins medicinais, por forma a avaliar a sua eficácia no controlo da espasticidade associada à esclerose múltipla. Uma solução oral de canábis (com 2,5 mg de Δ9-THC, 1,25 mg de CBD e <5% de outros canabinoides) ou Δ9-THC oral mostraram provas de um efeito terapêutico significativo na dor e espasticidade relatadas pelos doentes, com melhoria na espasticidade.5 Estes resultados foram observados num estudo de tratamento a longo prazo para ambas as formas farmacêuticas. As evidências disponíveis de estudos clínicos sugerem que a flor seca de canábis (evidência limitada) e determinados canabinoides (dronabinol, nabiximols e soluções orais de THC/CBD) estão associados, de algum modo, à melhoria dos sintomas ligados à esclerose múltipla, incluindo espasticidade, espasmos, dor, problemas do sono e sintomas de disfunção da bexiga. Observou-se o mesmo em estudos com doentes com lesões da espinal-medula.5
Várias sociedades médicas estabeleceram recomendações para a utilização de medicamentos à base da planta da canábis para a espasticidade.
Em 2020, a Academia Europeia de Neurologia (EAN) recomendou nabiximols para reduzir a espasticidade nos doentes com esclerose múltipla grave. Esta foi considerada uma “recomendação forte” com base em “evidência de certeza moderada”. Além disso, a EAN indicou que outros produtos disponíveis sob a forma de canábis para fins medicinais (por ex., extratos da planta Cannabis sativa) podem reduzir a espasticidade nos doentes com esclerose múltipla grave. Esta foi uma “recomendação fraca” com base em “evidência de certeza moderada”. 9
A Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN), porém, não estabeleceu quaisquer recomendações para além das regras do Infarmed relativamente à utilização de medicamentos à base da planta da canábis para a espasticidade. 10
A perda de apetite grave é um sintoma comum de muitas doenças crónicas e está frequentemente associada ao cancro e ao VIH/SIDA. Já há muito tempo que a canábis para fins medicinais está associada à melhoria do apetite, à diminuição das náuseas e à melhoria do paladar. Sabemos agora que os canabinoides endógenos, como a anandamida, aumentam o apetite pela sua ação nos recetores CB 1 . Desta forma, os canabinoides aumentam o nível do Neuropéptido Y no hipotálamo, o que resulta na estimulação da proteína quinase ativada por AMP, que é diretamente responsável pelos processos de alimentação. 11 Além disso, existem dados comprovativos de que a anandamida atua como um “sinal de fome” no intestino. Este sinal é transmitido ao cérebro através do nervo vago. Mais recentemente, algumas investigações demonstraram que os canabinoides influenciam a grelina, que também responsável pelo aumento de apetite. 11
A evidência disponível de estudos clínicos com humanos sugere que a canábis (evidência limitada) e o dronabinol podem aumentar o apetite e a ingestão calórica, assim como parecem promover o aumento de peso em doentes com VIH/SIDA. Quanto ao dronabinol a evidência é contraditória e os seus efeitos em doentes oncológicos parecem ser pouco satisfatórios. 5 O dronabinol está disponível nos EUA enquanto medicamento à base de canabinoides e está aprovado para a anorexia associada à perda de peso em doentes com SIDA e para náuseas e vómitos induzidos pela quimioterapia em doentes oncológicos que não responderam adequadamente aos tratamentos antieméticos convencionais. Atualmente, apenas uma flor da planta da canábis para fins medicinais (disponível como flor seca para inalação, com 18% de THC e <1% de CBD) é comercializada em Portugal. 12 Esta flor pode ser prescrita para a estimulação do apetite nos cuidados paliativos de doentes sujeitos a tratamentos oncológicos ou com SIDA.
Além disso, foram publicados recentemente vários estudos observacionais realizados em doentes com cancro, que demonstraram uma melhoria na estimulação do apetite após administração de preparações e substâncias à base da planta da canábis para fins medicinais, principalmente flor seca. 5
Infelizmente, ainda não existem guidelines que recomendem a utilização de produtos medicinais à base de canabinoides para o tratamento da perda de apetite. Em 2010, o projeto European Palliative Care Research Collaborative determinou que os canabinoides podem aumentar o apetite em doentes específicos, mas, globalmente, não existem evidências suficientes que sustentem a sua utilização (nível de recomendação: negativo fraco; consenso médio 7). 13 Em 2017, a Sociedade Europeia de Nutrição Clínica e Metabolismo (ESPEN) determinou que o dronabinol (canabinoide sintético) parecer poder aumentar o apetite em doentes com anorexia associada a doença oncológica. No entanto, constatou-se que a evidência era limitada e inconsistente e, portanto, a ESPEN não pôde formalizar uma recomendação. 14
As náuseas e os vómitos são efeitos secundários frequentes em doentes oncológicos, sendo também frequentes em outras doenças graves. As náuseas e os vómitos podem ser provocados pela própria doença, pela quimioterapia (ou outros medicamentos) ou mesmo pela radioterapia. O reflexo de vómito tem origem na medula e é influenciado por uma série de vias neuronais. Os canabinoides atuam como neuromoduladores sobre os recetores CB 1 pré-sinápticos presentes no SNC, onde modulam não só o apetite (referido acima), mas também as náuseas e os vómitos.15 O THC demonstrou reduzir as náuseas e os vómitos, de acordo com a sua ação sobre os recetores CB 1 ; no entanto, o THC também tem a capacidade de antagonizar os recetores 5-HT 3 , que pode igualmente auxiliar na sua regulação das náuseas e dos vómitos.
Embora os vómitos provocados pela quimioterapia pareçam ser geralmente bem controlados com as terapias de primeira linha/terapias triplas atuais (por ex., antagonistas 5-HT 3 , antagonistas da neuroquinina-1 e corticosteroides), as náuseas associadas, que podem ser agudas, tardias e particularmente antecipatórias, continuam a ser insuficientemente controladas e a administração de canábis/canabinoides para fins medicinais pode trazer, de alguma forma, benefícios nesses casos. 5
O dronabinol é disponibilizado nos EUA como um medicamento à base de canabinoides e está aprovado para a anorexia associada à perda de peso em doentes com SIDA e para náuseas e vómitos associados a tratamentos oncológicos (ex. quimioterapia), nos doentes que não responderam adequadamente aos tratamentos antieméticos convencionais. Atualmente, apenas uma flor da planta da canábis para fins medicinais (disponível como flor seca para inalação, com 18% de THC e <1% de CBD) é comercializada em Portugal. 5,12 Esta flor pode ser prescrita a doentes com náuseas ou vómitos (resultantes de quimioterapia, radioterapia e uma combinação de terapia para o VIH e medicação para a hepatite C).
Em 2015, Whiting e colaboradores, realizaram uma meta-análise de estudos que incluíam o dronabinol, a nabilona e o nabiximols, bem como outros canabinoides. Os resultados da meta-análise parecem indicar que o número médio de doentes com uma resposta completa às náuseas e aos vómitos é superior com canabinoides do que com placebo, nomeadamente com dronabinol e nabiximols. 16
Além disso, foram publicados recentemente vários estudos observacionais realizados em doentes oncológicos que demonstraram uma melhoria nas náuseas e nos vómitos com preparações de canábis para fins medicinais, principalmente com flor seca administrada por via inalatória. 5,17-19
Várias sociedades médicas estabeleceram recomendações para a utilização de produtos medicinais à base da canábis para as náuseas e os vómitos. A Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO) e a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), porém, não estabeleceram quaisquer recomendações oficiais para além das regras do Infarmed relativamente à utilização de medicamentos à base da planta da canábis para o tratamento de náuseas e vómitos associados a tratamentos oncológicos (ex. quimioterapia, radioterapia). Em 2021, a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) organizou um webinar dedicado a debater a utilização da canábis para fins medicinais no contexto dos cuidados paliativos. 20,21
Nos EUA, a National Comprehensive Cancer Network (NCCN) considera os canabinoides para doentes com NVIQ refratários ou em fase tardia. 22
Durante muitos anos, a investigação demonstrou que os canabinoides podem desempenhar um papel relevante no tratamento da epilepsia. O sistema endocanabinoide (ECS) regula a excitabilidade cortical e sugeriu-se que os endocanabinoides podem produzir um efeito estabilizador no equilíbrio entre neurotransmissores excitatórios e inibitórios no SNC. 23 Durante a epilepsia, ocorre uma alteração nos recetores CB1 e uma expressão de DAGL no hipocampo, assim como alterações nos níveis de anandamida (endocanabinoide). 24 Este facto sugere que o ECS desempenha um papel na epilepsia. Além do ECS, o canabidiol (CBD) tem outros mecanismos anticonvulsivantes que também parecem estar envolvidos na epilepsia. O CBD reduz a hiperexcitabilidade neuronal através da modulação do GPR55 e do TRPV1, bem como da modulação da sinalização mediada pela adenosina através da inibição de absorção celular de adenosina via ENT-1. 24
Em 2019, o canabidiol (Epidyolex®) foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) para o tratamento de convulsões em doentes pediátricos, com dois ou mais anos, com síndrome de Lennox-Gastaut e síndrome de Dravet, em associação com clobazam. 25 Estas constituem duas formas de epilepsia raras, mas extremamente debilitantes. A aprovação assentou nos resultados de quatro ensaios clínicos em mais de 700 doentes. 25 Constatou-se que o CBD era superior ao placebo na redução da frequência de convulsões (tónico-clónicas, tónicas, clónicas e atónicas) em doentes com síndrome de Dravet e da frequência de convulsões atónicas em doentes com síndrome de Lennox-Gastaut.
Foram realizados outros estudos (por ex., estudos observacionais ou ensaios abertos de Fase II) em doentes pediátricos com epilepsia resistente aos medicamentos com formas farmacêuticas de canabidiol que incluíam uma baixa concentração de THC, nomeadamente 2 mg/ml de THC:100 mg/ml de CBD, 1:20 THC:CBD ou 1:25 THC:CBD, numa tentativa de demonstrar que os doentes podem beneficiar das propriedades antiepiléticas do THC para além do CBD. 26-29 No geral, estes estudos revelaram uma boa tolerabilidade e apresentaram elementos de prova complementares de que os canabinoides podem desempenhar um papel relevante no tratamento de crianças com epilepsia refratária.
Infelizmente, uma vez que o canabidiol só foi aprovado recentemente para a epilepsia, ainda não existem guidelines que recomendem vivamente a utilização de produtos medicinais à base de canabinoides para o tratamento da epilepsia.